Mantém-se a gonioscopia um exame fundamental na avaliação do glaucoma?

Arabela Futre Coelho, MD

Assistente Hospitalar Graduada, Joaquim Chaves Saúde

O ângulo entre a superfície posterior da córnea e a anterior da íris constitui o ângulo da câmara anterior (CA) ou ângulo camerular.

Foi visualizado pela primeira vez em 1907 por Trantas por indentação do limbo num caso de queratoglobo mas só em 1914 Salzmann descreveu a primeira lente de gonioscopia, que foi sofrendo modificações ao longo dos anos até que Goldmann em 1968 introduziu o gonioprisma que usamos hoje.

A classificação do ângulo camerular foi pela primeira vez sugerida por Barkan em 1938.

Conforme a sua amplitude o glaucoma pode classificar-se em dois grupos: ângulo aberto ou ângulo fechado1.

A drenagem do Humor Aquoso (HA) é feita através da estrutura fibrilhar trabecular e pelo lúmen do Canal de Schlemm que ocupam o vértice do ângulo da camerular.

O acesso do HA a essas estruturas pode estar limitado em diferentes situações resultando na subida da pressão intra ocular (PIO), que pode ser abrupta ou insidiosa.

Os olhos mais susceptíveis às subidas abruptas da PIO são os que anatomicamente são mais pequenos, geralmente hipermetropes, em que as estruturas estão mais próximas e geralmente desviadas anteriormente criando condições para o bloqueio angular2,3,4,5.

 

Gonioscopia

A gonioscopia é a análise do ângulo da câmara anterior (CA).

Permite–nos avaliar a amplitude do ângulo (se é aberto ou fechado e neste caso se de forma transitória ou definitiva), o nivel de inserção da íris e sua configuração periférica e visualizar outras imagens como sinequias, pigmento, vascularização, disgenesis (Fig. 1).

Fig. 1 – Disginesis - pontes iridianas

        Fig. 1 – Disginesis - pontes iridianas

Desta visualização dependerá o diagnóstico do tipo de glaucoma presente e naturalmente a atitude terapêutica a tomar.

Como se realiza

Na prática diária realiza-se com o recurso a uma lâmpada de fenda e uma lente que permita a visualização directa do ângulo como a de Koeppe ou indirecta como a de um ou três espelhos de Goldmann ou de quatro espelhos de Zeiss, de diâmetro ligeiramente inferior à córnea permitindo uma gonioscopia de indentação ou dinâmica6,7 (Fig. 2).

Fig. 2 - Visualização do ângulo camerular

Fig. 2 - Visualização do ângulo camerular

 

Objectivo

O objectivo é a visualização das estruturas angulares (linha de Schwalbe, trabeculo, esporão escleral , banda ciliar) e avaliação  de quatro pontos chave:

A - amplitude do ângulo;

B – pigmentação;

C – trabeculo;

D – inserção da íris.

Existem várias classificações para a abertura angular como a de Shaffer que tem em conta o ângulo formado pela porção interna do trabeculo e a face anterior da íris e assim conforme o número de estruturas visualizadas:

A:         Grau 0 -  0º - nenhuma estrutura visível = ângulo fechado

                      1 – 10º - só o anel de Schwalbe é visível = oclusão provável

                      2 – 20º - trabeculo visível = oclusão possível

                      3 – 25º - 35º - esporão visível = oclusão improvável

                      4 – 35º - 45º - banda ciliar visível = oclusão impossível

Actualmente a gonioscopia de Spaeth é a mais aconselhada por ser mais detalhada pois estuda não só a abertura angular mas também a inserção da raiz da íris (de A a E conforme é anterior à linha de Schwalbe, esporão escleral ou banda ciliar) e a sua configuração periférica (convexa, regular ou côncava) durante a compressão da gonioscopia dinâmica.

B: A pigmentação trabecular é fisiologicamente moderada mas pode variar com a idade e a raça. Está aumentada no Sindroma de Dispersão Pigmentar (Fig. 3),

Sindroma Pseudo Exfoliativo, e nos processos inflamatórios ou tumurais.

Fig. 3 - Hiperpigmentação trabecular

Fig. 3 - Hiperpigmentação trabecular

C: A redução da drenagem trabecular pode resultar da deposição de pigmento, material pseudoexfoliativo, neovasos (Fig. 4), material inflamatório com formação de sinéquias ou anomalias do anel de Schwalbe como nos Sindromas Irido-Corneo-Endoteliais (Fig. 5).

 

Fig. 4 - Neovasos angulares

Fig. 4 - Neovasos angulares

Fig .5 - Sindroma Irido – Corneo - Endotelial

Fig .5 - Sindroma Irido – Corneo - Endotelial

 

D: A avaliação do nível da inserção da íris4 permite distinguir o aparente do real . A raiz da íris, que se insere normalmente na face anterior do corpo ciliar ao nível da banda ciliar, pode nos casos de ângulo estreito inserir-se ao nível do esporão ou mesmo pouco atrás da linha de Schwalbe. É habitualmente discretamente convexa mas pode variar entre côncava (miopia), convexa localizada (tumor ou quisto subiridiano) (Fig. 6) ou plana como nos casos de íris plateau em que a (CA) é profunda centralmente, a íris é plana mas sofre periféricamente uma angulação abrupta para o vértice do ângulo que é estreito ou mesmo fechado.

Fig. 6 - Tumor subiridiano

Fig. 6 - Tumor subiridiano

 

A gonioscopia dinâmica tem um papel importante na avaliação do ângulo pois permite definir o nível de inserção real da íris2.

Consiste na compressão da cornea por uma lente de gonioscopia com um diâmetro ligeiramente mais pequeno do que esta. O humor aquoso é comprimido para a periferia conduzindo a um alargamento da amplitude do ângulo por empurramento da íris nos casos de aposição iridotrabecular simples. Em situações patológicas como no caso de sinéquias anteriores periféricas este fenómeno não se verifica.

 

 Teste de Van Herick

Permite avaliar a profundidade da câmara anterior na ausência de uma lente de gonioscopia utilizando apenas  a lâmpada de fenda, fazendo incidir sobre a periferia da cornea uma fenda estreita num ângulo de cerca de 60º em temporal. A espessura da cornea é usada como unidade de medida e é avaliado o espaço entre o endotélio da cornea e a íris que se for inferior a ¼ da espessura da cornea corresponde a um ângulo muito estreito e se igual ou superior a ½ corresponde a um ângulo aberto.

 

Voltando à pergunta inicial e considerando a quantidade de informação que a gonioscopia permite obter, a importância desses dados para o diagnóstico final e a importância deste último para a instituição da terapêutica correcta só podemos concluir que a práctica da gonioscopia deve fazer parte obrigatória da avaliação de todo o paciente suspeito ou portador de glaucoma.

 

 

4ª Edição - Maio 2017