Há um fenótipo tipo nos glaucomas normotensionais?

Luís Abegão Pinto, MD, PhD

Centro Hospitalar de Lisboa Norte. Centro de Estudos das Ciências da Visão, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa

O glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA) é uma das principais causas de cegueira a nível mundial1. Um dos principais factores de risco – a pressão intra-ocular (PIO) – tem servido como factor diferenciador entre duas populações com glaucoma: aqueles que apresentam valores acima da normalidade para uma população normal (>21mmHg) e aqueles em que este factor de risco nunca foi registado como acima deste valor. Estes últimos são identificados como tendo um glaucoma normotensional (GNT).

Esta divisão é necessariamente arbitrária, na medida em que os valores de normalidade podem variar consoante a população em causa. Por exemplo, em algumas populações asiáticas, os valores médios de PIO são inferiores aos 16mmHg normalmente considerados como valor padrão2,3Por outro lado, a categorização do doente entre GPAA e GNT está limitada aos horários em que podemos avaliar a PIO. Considerando que existe uma variação significativa da PIO ao longo do dia4, é possível que alguns doentes categorizados como tendo um GNT tenham um pico tensional acima do limiar de 21mmHg fora do horário laboral do oftalmologista.

Tendo em conta esta arbitrariedade na classificação, vários autores têm sugerido que estes doentes com glaucoma normotensional apresentem outras características que os diferenciem5. Independentemente destas variáveis clínicas poderem ou não reflectir um mecanismo fisiopatológico diferente nestes doentes, os dados existentes obtidos em vários estudos permitem a identificação de alguns fenótipos dentro desta população com GNT, que podem ajudar o clínico não só na classificação mas também, aparentemente, a perceber qual a provável resposta à instituição de terapêutica ou a velocidade de progressão da doença.

Apesar de não serem características exclusivas dos doentes com GNT, estes são mais frequentemente do sexo feminino, com história de enxaquecas e vasospasmos periféricos. O doente com história de vasospasmo periférico (caracterizado por Flammer6, 7– Tabela 1), tem mais frequentemente uma personalidade tipo A, são magros, têm maior sensibilidade ao frio, menor sensibilidade à sede e ainda menor sensibilidade às terapêuticas com anti-depressivos. Estes sintomas esbatem-se com a idade, particularmente nos doentes do sexo feminino (após a menopausa).

 
Tabela 1. Características clínicas típicas do doente vasospástico
Sexo feminino Hipotensão arterial
Personalidade tipo A Fenómeno de Raynaud
Enxaquecas Baixo peso corporal

Há algum consenso em que existe uma patologia cardiovascular subjacente, tendo estes doentes valores de tensão arterial fora da normalidade (abrangendo quer hipotensões arteriais marcadas durante o período nocturno, pressões distólicas em repouso inferiores a 90mmHg, ou, no espectro oposto, episódios de hipertensões arteriais fortemente medicadas e história de patologia cardíaca e doenças cerebrovasculares)6, 8, 9.

Estas diferenças clínicas podem também estender-se ao exame objectivo oftalmológico. Vários autores têm sugerido que existem diferenças morfológicas do globo ocular entre doentes com GPAA e GNT. Estes últimos teriam uma menor espessura central da córnea, o que poderia condicionar a variável que estabelece o critério (PIO)10-12. Ao nível do fundo ocular, estes doentes com GNT parecem ter mais frequentemente lesões focais isquémicas ao nível do anel neuroretiniano, sendo que, nestes casos, a nasalização dos vasos central da retina é menos frequente5. Verifica-se ainda uma maior prevalência de hemorragias do disco óptico13, 14. É interessante contudo notar que dados recentes sugerem que a morfologia dos discos de doentes com GNT (avaliada quer por exames estruturais quer por avaliação clinica) mostra uma pior correlação com o defeito de campo do que os doentes com GPAA. De facto, para doentes com um defeito de campo similar, a escavação vertical parece ser maior nestes doentes15

Exame Objectivo Oftalmológico5, 14
Espessura central da córnea Potencialmente menor
Disco óptico Isquémia focal do anel neuro-retiniano
Hemorragia do disco óptico mais frequente
Emergência dos vasos centrais da retina não nasalizada

As publicações provenientes do Collaborative Normal-Tension Glaucoma Study13, 16, 17sugerem que, do ponto de vista clínico, os doentes com maior risco de progressão da patologia, se não for iniciada terapêutica, são: raça caucasiana (por oposição a doentes asiáticos), sexo feminino, história de enxaqueca e presença de hemorragias do disco óptico. Por outro lado, os factores que diminuem a probabilidade da redução da PIO ser eficaz na prevenção dessa progressão são: sexo masculino, história de doença cardiovascular isquémica, história familiar de doença cerebrovascular e presença de hemorragias do disco óptico.

Características associadas a progressão17-20
Idoso
Sexo feminino
Sinais de vasospasticidade
Toma de antihipertensores arteriais
Enxaqueca
Baixo índice de peso corporal
Miopia
Hemorragias do disco óptico

O interesse destas caracterizações é de particular importância aquando da abordagem inicial destes doentes. Se considerarmos que a história natural da doença sugere que uma maioria dos doentes com GNT não apresentará sinais de progressão a longo prazo mesmo que não se institua qualquer medicação21, torna-se necessário identificar quais os doentes que têm maiores factores de risco para que essa progressão aconteça. Do ponto de vista prático, isto permitirá ao clínico ajustar a PIO-alvo destes doentes para valores mais baixos, por exemplo, bem como programar o seguimento destes doentes para intervalos menores, de modo a ser capaz de identificar sinais de progressão mais precocemente.

Uma chamada de atenção particular ao perfil tensional arterial destes doentes. Ainda que frequentemente refiram pressões arteriais dentro da normalidade ou até hipotensões ligeiras, há que equacionar a hipótese destes doentes – que geralmente possuem sinais disfunções marcadas do sistema nervoso vegetativo – apresentarem diminuições marcadas da pressão de perfusão ocular (big dippers). Nestes doentes, há que investigar as terapêuticas hipotensoras arteriais sistémicas, bem como tentar adoptar medidas que evitem/agravem os mecanismos fisiopatológicos associados à disfunção vascular destes doentes (ver capítulo – “como é que a componente vascular pode causar glaucoma”).  

 
 
 
4ª Edição - Maio 2017